Criador e orientador do Grupo de Teatro Tá na Rua, Amir Haddad é diretor, ator e professor de teatro diversas vezes premiado. Nacional e internacionalmente reconhecido, realiza um trabalho que procura recuperar o sentido de festa do Teatro e a dramaticidade das Festas Populares.
Seu trabalho se caracteriza pela desconstrução da linguagem teatral convencional, processo que se estabelece muito cedo, a partir do contato com as expressões dramáticas da cultura popular brasileira, em Belém/PA (1962), das questões oferecidas por sua prática e que se acirra na década de 1970, período em que dirige grupos alternativos, espaços onde se torna possível aprofundar suas pesquisas e buscar respostas às inquietações que o fazer teatral lhe sugere: a disposição não convencional da cena; a utilização aberta dos espaços cênicos; a interação entre atores e espectadores; a desconstrução da dramaturgia. Um processo e uma busca que se sedimentará no seu trabalho como diretor a partir da fundação do Tá na Rua, em 1980.
Os mais de sessenta anos desse seu fazer teatral possibilitam, hoje, uma visão mais ampla e aprofundada dos caminhos escolhidos por Amir e, assim, torna possível também a tentativa de esboçar um quadro geral que permita reconhecer alguns pontos importantes que informam seu pensamento sobre o ator, sobre o Teatro, sobre o Mundo e que, de alguma forma, identificam seu trabalho. Algo passível de ser percebido em muitas de suas falas em entrevistas, depoimentos, e mesmo em textos de sua própria autoria.
O que se encontra aqui são assim, trechos colhidos em alguns desses materiais, com a pretensão de criar um espaço onde seu pensamento se exponha com a clareza que sua fala nos oferece, sem distorções interpretativas de qualquer natureza.
YM – Vocês estão trabalhando em Agamenon há cinco meses, quando um espetáculo é normalmente ensaiado em cerca de um mês. Por quê?
AH – Nós não estamos trabalhando em Agamenon há cinco meses. Estamos trabalhando com Agamenon há cinco meses. Nós não estamos fazendo um espetáculo que normalmente é feito em cerca de um mês. Estamos, isso sim, iniciando um tipo de pesquisa de interpretação que não tem tempo de duração determinado e que não é feito para o que convencionalmente se chama um espetáculo. Estamos trabalhando com o ator. Isso significa que temos pouquíssimo tempo de trabalho. Apenas cinco meses. (“Agamenon: ator e seu mundo em questão”. Matéria de Yan Michalski, publicada no Jornal do Brasil, em 07/06/1970)“Só o teatro salva” – salva pelos aspectos coletivos do trabalho do teatro; para trabalhar com o teatro, temos de atuar sobre as relações daquele grupo, mexer com a produção dos afetos naquela coletividade e é isso que salva. (Amir Haddad – Depoimentos cariocas, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, em 18/12/2022)
Carnavalizar – sobre o encontro com Joãozinho Trinta
– É um capítulo forte, importante, esse do Carnaval na minha vida, por causa desse encontro meu com o Joãozinho Trinta. Quando nós nos encontramos eu estava num trabalho grande de carnavalizar o meu teatro; no sentido de que no Carnaval não há autoridade; ela se dilui. O prefeito entrega as chaves da cidade para o Rei Momo, que é outro tipo de autoridade: a autoridade da folia, da alegria, da brincadeira, da liberdade. O prefeito se destitui de seu poder para dar espaço para uma nova possibilidade de manifestação do cidadão fora dos procedimentos normais de controle social a que nós estamos submetidos. Então, o Carnaval é uma proposta de liberdade. E eu queria carnavalizar o meu teatro, queria meus atores livres como um folião de Carnaval; com identidade, opinião, trabalhando em conjunto, se desenvolvendo, mas sem que tivesse uma cabeça dando ordem pra ele. (Amir Haddad – Depoimentos Cariocas. Entrevista para o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, gravada em 18/11/2022, no apartamento de Amir Haddad, no bairro carioca de Santa Teresa).
SAIBA MAIS
Amir Haddad, filho de Jorge Abrahão Haddad e de Nassima Camillo Abrahão, ambos de origem síria, nasce em Guaxupé/MG, em 2 de julho de 1937. Aos 5 anos, muda-se com a família para Rancharia, interior de São Paulo (oeste paulista) e aos 14, vai para a capital, São Paulo, a fim de continuar os estudos, primeiramente no Colégio Estadual Franklin Delano Roosevelt e, depois, na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.
É no pátio do Colégio que, pela primeira vez assiste a uma peça de teatro: Uma mulher e dois palhaços, dirigida por José Renato, criador do Teatro de Arena, com Eva Vilma, Sérgio Brito e John Herbert e se encanta com o universo do teatro.
É no espaço acadêmico, anos depois, que encontra com José Celso Martinez Corrêa, Renato Borghi e outros estudantes que, junto a ele, criam, em 1958, o grupo Oficina – fato que o leva a abandonar a Faculdade. Amir desejava ser ator, mas fora reprovado no exame para a Escola de Teatro, por Alfredo Mesquita. E não é no grupo que seu desejo se tornará realidade. Nele só lhe cabe tornar-se diretor.
Inicialmente, não há pretensão de profissionalização; a decisão é de se manter como uma espécie de laboratório de teatro. São muitas e importantes as questões que perpassam o teatro brasileiro nesse momento – entre elas, a busca por um teatro nacional, com traços de brasilidade -, e o Oficina pretende contribuir fortemente para resolvê-las, encenando de preferência peças de autores brasileiros.
Nesse final da década de 1950, o teatro no Brasil ainda dava seus primeiros passos em direção a seu fortalecimento; a direção tinha um certo sotaque: todos os grandes diretores do Teatro Brasileiro de Comédia – TBC, marco exponencial do teatro paulista e brasileiro, eram estrangeiros: Alberto D’Aversa, Adolfo Celli, Gianni Rato, Ziembinski.
Paralelamente, o Teatro de Arena, fundado por Zé Renato Pecora (1953), já apresentara Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, colocando em cena o cotidiano da classe trabalhadora, e trilhava um caminho próprio, realizando os Seminários de Dramaturgia criados por Augusto Boal, discutindo uma linha de ação, apresentando uma ideologia.
Pouco após sua formação, o Oficina adquire uma sede, o Teatro Novos Comediantes, na Jaceguai, 520. Aí Amir realiza a direção do primeiro espetáculo do grupo, formado pelas peças A Ponte, de Carlos Queiroz Telles, e Vento Forte para Papagaio Subir, de José Celso Martinez Corrêa (1958). Em 1959, o grupo realiza a montagem de A Incubadeira, também de José Celso Martinez Corrêa, espetáculo que ganhou diversos prêmios no II Festival Nacional de Teatro do Estudante, organizado por Paschoal Carlos Magno: melhor autor, melhor atriz (Etty Fraser) e para Amir, melhor diretor.
É também com esse espetáculo que o Oficina é convidado a se apresentar no espaço do Teatro Arena, na capital paulista, local que, naquele momento, se constitui enquanto foco irradiador das discussões sobre as transformações que se faziam necessárias para o desenvolvimento de nosso teatro, e que, paralelamente, oferece um espaço teatral não convencional, onde as relações público-ator se estabelecem de forma não-frontal. A partir desse período, os desejos em relação à profissionalização do grupo se modificam e se acirram. Zé Celso lidera o grupo que pretende se profissionalizar; Amir, o grupo que pretende permanecer como grupo experimental. Amir e outros atores são excluídos do grupo.
Por algum tempo, sem grupo de trabalho, Amir passa a trabalhar no teatro profissional, dirigindo algumas peças, como Se meu apartamento falasse, Ilha nua e Quarto de despejo, de Carolina de Jesus.
Em 1962, é convidado a participar, como professor de direção, da implantação do Curso de Formação de Ator do Serviço de Teatro da Universidade Federal do Pará/UFPA, em Belém, curso que dará origem, em seguida, à estruturação da Escola de Teatro da UFPA.
A ida para Belém é transformadora, não apenas por levar Amir a conhecer uma realidade cultural e social totalmente diferente de São Paulo, como por tornar necessário um aprofundamento de seus conhecimentos sobre teatro e, principalmente, por levá-lo a lidar diretamente com a questão da formação do ator. É ainda em Belém que entra em contato com eventos culturais da região, formas de expressões dramáticas populares, como os pássaros, que se tornam decisivos para a aproximação de seu trabalho com a questão do popular.
Um novo foco de interesse também ressalta: aos aspectos de pesquisa, já presentes desde o início, vão se unir, a partir de então, as questões de educação, principalmente relacionadas aos aspectos formativos que esta abarca. Pelas contribuições que oferece, é nos processos de aquisição e desenvolvimento de novos conhecimentos sobre teatro, presente nos grupos de teatro, cursos, oficinas, bem como em sua atuação como professor em escolas de teatro que Amir encontra um espaço onde pode experimentar, criar, alimentar suas reflexões, e ao qual permanece continuamente ligado, até hoje.
Assim, além das diversas peças que dirigiu, seu trabalho é marcado por sua atuação como professor e, dentre as diversas atividades que desenvolveu podemos destacar sua atuação na Escola de Teatro Martins Pena, no Curso de Teatro da FEFIERJ (Federação das Escolas Federais Integradas do Estado do Rio de Janeiro) (1966/1973), além de sua importante participação no Centro de Artes de Laranjeiras – CAL, onde atuou diversas vezes como professor-diretor dos trabalhos de encerramento de curso dos alunos. Em 1988, é Pedagogo convidado da Escola Internacional de Teatro para a América Latina e Caribe – ITALC, em Havana (Cuba), participando do Tercer Taller, cujo tema de desenvolvimento foi Tecnicas actuales de creación teatral en America Latina y el Caribe.
Também os grupos de trabalho se tornam constantes em sua carreira. Em 1965-66, já morando no Rio de Janeiro, assume a direção do Teatro da Universidade Católica do Rio de Janeiro, o TUCA-Rio, onde exerce a função de orientador artístico do grupo, participando ativamente de todas as etapas até a escolha do poema dramático O Coronel de Macambira, de Joaquim Cardoso, inspirado no auto dramático do Bumba Meu Boi de Pernambuco e Maranhão, e que foi o segundo espetáculo do TUCA (1967). Com o advento do AI-5 em 1968, o grupo, marcado pelo engajamento e intensa mobilização política, ficou sem condições de prosseguir e interrompeu suas atividades.
Ainda em 1968, juntamente o diretor Paulo Afonso Grisolli, Marcos Flaskman, Tite Lemos e outros, Amir Haddad organiza o grupo A comunidade, instalado em uma das salas do Museu de Arte Moderna/MAM-RJ, do qual participam ex-alunos do Curso de Teatro da FEFIERJ e outros atores, e com o qual realiza o espetáculo A construção, de Altimar Pimentel, vencedor do Prêmio Molière de 1969. Nele já se encontram fortemente concentradas as propostas estéticas que Amir vem aprofundando como diretor, entre elas a fusão palco e plateia, buscando uma interação entre atores e espectadores.
Na década de 1970, insatisfeito com os espaços de trabalho oferecidos pelo teatro profissional, onde atua continuamente, Amir monta o espetáculo Somma ou os Melhores Anos de nossas vidas (1974), com a intenção de fazer uma espécie de inventário de seu trabalho. Apesar de ter liberados pela Censura todos os textos que o compunham, o espetáculo é censurado pouco após a estreia, devido a linguagem aberta, improvisada com que foi realizado.
Após a censura ao espetáculo, um grupo de atores que haviam participado da montagem decide permanecer junto a Amir, a fim de aprofundar questões relacionadas com a linguagem teatral. Esse núcleo, que sofre modificações, com a saída de alguns participantes e a entrada de outros, se estabelece numa sala do DCE da UFF, em Niterói, e em pouco tempo se estrutura como Grupo de Niterói. O prosseguimento dessa pesquisa é a base de origem, em 1980, do Grupo Tá na Rua, com o qual Amir leva a arte do teatro para o espaço comum e aberto das ruas e praças, destacando a importância da arte criada de forma pública, acessível e seu poder de transformação social, cultural e urbano. É quando tem início o processo de síntese de suas pesquisas, com o aprofundamento de questões relacionadas ao espaços e ao ator, e a estruturação da linguagem carnavalizadora do grupo.
De 1992/1995, embora as atividades do Tá na Rua prossigam normalmente, Amir organiza, juntamente com Antonio Pedro, Ricardo Petraglia e Anselmo Vasconcelos o núcleo de Teatro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – TUERJ, que chega a apresentar um primeiro espetáculo, mas depois não tem continuidade.
Em 2017, cinquenta anos após a montagem do Coronel de Macambira pelo TucaRio, Amir Haddad participa, junto a antigos integrantes do coletivo, da fundação do TUCAARTE – Associação TUCA de Arte e Cultura, para retomar o trabalho cultural. A nova etapa de trabalho tem como finalidade manter viva a memória dons bons e dos maus momentos vivenciados na década de 1960, e para tal criaram o espetáculo Re-Acordar, com dramaturgia desenvolvida por Amir a partir de narrações dos atores, e com a manutenção da trilha sonora original, então criada por Sérgio Ricardo.
Ao longo dos mais de 60 anos de carreira, Amir Haddad realizou mais de 250 espetáculos, acumulando trabalhos memoráveis e se consolidando como figura singular no cenário artístico-cultural do Brasil. Dirigiu artistas como Renata Sorrah, Pedro Cardoso e Tonico Pereira, em Noite de Reis, de Shakespeare (1997); Clarice Niskier, em A Alma Imoral, de Nilton Bonder, com estreia em 2006 e que vem sendo continuamente apresentado, em temporadas, desde então, e, mais recentemente, Andréa Beltrão, em Antígona, de Sófocles, estreado em 2016.
São diversos os prêmios que recebeu por seus trabalhos como diretor, dentre os quais se destacam: o Prêmio Molière de Direção Teatral (1969) pela peça A construção, de Altimar Pimentel; o seu segundo Prêmio Molière de Direção Teatral (1970) por O marido vai à caça, de Georges Feydeau; o Prêmio Shell na categoria Diretor (1989) por Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar; o Prêmio Sharp na categoria Diretor (1997) por Mercador de Veneza, de William Shakespeare, entre muitos outros.
Um último aspecto importante a ressaltar, é o trabalho de Amir como ator. O movimento inicial que o levou a buscar o Teatro começa a se materializar realmente em cena na montagem de Somma ou Os melhores anos de nossas vidas, e se fortalece ao longo de toda a trajetória do Tá na Rua, quando sua participação nas rodas e nas oficinas do grupo se tornam fator importante para o desenvolvimento da linguagem atorial. A partir de então, foram diversas suas participações em filmes e em novelas.
Mas eu recuperei o ator no meio do caminho. Enquanto fui diretor de teatro profissional, eu era só diretor, mas eu recuperei de vez o ator quando eu fui fazer o meu grupo de teatro de rua. Quando apareceu a rua, apareceu também a possibilidade de recuperar o meu ator. (…) Hoje o ator é uma parte importante do meu trabalho, pra mim. Sem falar que eu faço bem isso, formar ator, criar um conceito novo de ator cidadão, participante da vida social do país e que atua nos espaços abertos e tem recursos, armas e instrumentos pra atuar no espaço aberto sem usar os recursos da cena italiana, é só a cidade que está em volta. (Redação SRzd11/11/2013. Portal SRzd)
Atualmente, seu trabalho como ator se realiza no espetáculo Zaratustra – uma transvaloração dos valores, desenvolvido com trechos da obra do filósofo Friedrich Nietzsche, e no qual, além de dirigir, atua com os atores do Tá na Rua. Em 2024, o espetáculo participa do PALCO GIRATÓRIO do Sesc Brasil, maior circuito das artes cênicas no país, se apresentando em 11 cidades brasileiras, ao longo de todo o ano.
Em 2006, Amir foi agraciado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural e, em 2019, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em 2024, por ocasião da festa de entrega das premiações, o Prêmio Shell fez uma homenagem a Amir e Renato Borghi, fundadores e últimos remanescentes do Teatro Oficina.
Em 2023, nasce o Festival de Teatro Amir Haddad, uma celebração dedicada à vida e obra desse que é um dos maiores nomes do teatro brasileiro. O evento não apenas homenageia a trajetória de Amir Haddad, mas também divulga a essência do teatro que ele defende: popular, inclusivo e transformador. Idealizado por Máximo Cutrim, com direção geral do próprio Amir Haddad e realização do Instituto Tá Na Rua, o festival oferece uma programação diversificada, incluindo espetáculos dirigidos e/ou supervisionados pelo homenageado, intercâmbios culturais, exibições de filmes, shows, oficinas e performances que refletem suas ideias e práticas artísticas. Em 2024, o festival voltou ainda maior e mais impactante, ampliando suas atividades e consolidando-se como um dos principais eventos do calendário teatral carioca. Durante sete dias, a Lapa se transformou em um verdadeiro epicentro de vida cultural, reunindo artistas, estudantes, entusiastas do teatro e a comunidade em geral em um ambiente de troca, aprendizado e diálogo. Mais do que um evento, o Festival de Teatro Amir Haddad é uma experiência única, onde arte, cultura e reflexão se encontram para celebrar a criatividade e a diversidade. Com sua terceira edição confirmada para 2025, o festival segue expandindo horizontes e fortalecendo seu papel como um espaço de celebração da arte e de transformação social, perpetuando o legado de um mestre que fez do teatro um ato de resistência e liberdade.