Ao partir para as ruas, espaço inusitado e instigante, rompendo com todos os critérios de investigação até então estabelecidos, o TÁ NA RUA dá sequência a seu processo de pesquisa, acrescentando-lhe novo desafio: observar as interferências desse novo espaço na linguagem teatral do grupo.
Praças e ruas são os espaços abertos da cidade, locais especiais de encontro, de lazer, de estar; são o respiradouro dos bairros. Por suas estruturas expandidas, permitem mais facilmente que nelas se realizem manifestações e espetáculos variados. A junção desses fatores, acrescida das características de diversidade social dos que a frequentam, transforma “a rua” (ruas e praças) em terreno fértil para o desenvolvimento de tudo que diz respeito ao popular, ao jogo, à brincadeira, abrindo espaço para a corporalidade e o grotesco presentes na linguagem cômica.
A linguagem teatral resulta de um processo de construção que se faz por meio de um exercício de escolhas, de negações e afirmações de formas expressivas. Uma das escolhas feitas pelo Tá na Rua ao desenvolver sua linguagem, foi a de manter uma relação bastante próxima com o Carnaval, não no que diz respeito às suas formas representativas mais atuais, mas sim àquilo que estabelece seu sentido mais profundo e que, a nosso ver, permanece subjacente na cultura popular do Rio de Janeiro: a capacidade de olhar com humor e ironia os dramas do cotidiano, de brincar com o lado cruel da vida e seu constante movimento, que o grupo capta e absorve em sua linguagem. Não há, portanto, em nenhum momento, qualquer tentativa de “reproduzir” o carnaval em sua linguagem, mas o afloramento de uma cultura internalizada, absorvida não só no período das festividades carnavalescas, como no cotidiano da cidade, que vive “um eterno carnaval”.
Apenas um aspecto torna mais evidente essa profunda relação com a carnavalização, e é justamente o da estética trabalhada, desenvolvida e aprimorada pelo grupo, que pode ser percebida como a estética próxima àquela do bloco de sujo, ou seja, que é toscamente criada, e que pode ser detectada na organização de seu espaço de representação, no modo como se compõe seu figurino e em sua própria maneira de atuar.
Mais além, ainda, a linguagem carnavalesca permitiu ao grupo enveredar por caminhos sempre discutidos por seu coletivo: aquele do autoritarismo e da autoridade.
(…) no Carnaval não há autoridade; ela se dilui, o prefeito entrega as chaves da cidade para o Rei Momo, que é outro tipo de autoridade: autoridade da folia, da alegria, da brincadeira, da liberdade. O prefeito se destitui de seu poder para dar espaço para uma nova possibilidade de manifestação do cidadão fora dos procedimentos normais de controle social a que nós estamos submetidos. Então, o Carnaval é uma proposta de liberdade. E eu queria carnavalizar o meu teatro, queria meus atores livres como um folião de Carnaval; com identidade, opinião, trabalhando em conjunto, se desenvolvendo, mas sem que tivesse uma cabeça dando ordem pra ele – vai administrando isso.
(Amir Haddad – Depoimentos Cariocas. Entrevista com a equipe de Promoção Cultural do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, gravada no dia 18 de novembro de 2022, no apartamento de Amir Haddad, no bairro carioca de Santa Teresa).
Uma proposta que provoca e, paralelamente, é fortalecida pelo encontro de Amir Haddad e Joãozinho Trinta – Grupo Tá na Rua e Escola de Samba Beija-Flor, de Nilópolis, no Carnaval de 1989.
Saiba Mais
Durante anos estivemos na luta contra o estabelecido, insatisfeitos, sem uma proposta para substituir. Durante anos ficamos mudos: não falávamos língua alguma. Quando desmontamos o estabelecido dentro de nós começaram a aparecer outras possibilidades: surgiu um teatro que reconhecíamos como popular. Como no Carnaval, quando o rei momo está reinando e tudo que é estabelecido é abandonado e reina a desordem. Ao saírmos para a rua, encontramos o outro lado; viramos o teatro de
cabeça para baixo, como um saltimbanco – o símbolo de nosso grupo, Tá na Rua. (Amir Haddad)
A linguagem do Tá na Rua:
- uma linguagem que apresenta a realidade, ao invés de representá-la
- uma linguagem irreverente, livre, aberta, popular
- uma linguagem que restabelece as relações do homem com o mundo, a vida, que retoma o sentido de comunhão que é próprio do teatro
- uma linguagem que contém uma ética e uma estética que é fruto de nossas origens brasileiras, de nossa cultura, que contribui para a construção de um novo mundo, um mundo em que a vida comunitária e a cidade estão incluídas
- uma linguagem que tem em si os conteúdos da festa, envolvendo a todos em um mesmo movimento, que vira o mundo de cabeça para baixo, apontando para questões utópicas e aflorando a possibilidade de interação entre as pessoas